Em meio às discussões sobre maior integração comercial do Brasil com seus vizinhos , o debate tem se concentrado em torno de uma proposta: a moeda comum latino-americana , ou “sur” , como deve se chamar. Algo parecido já foi defendido pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas existem diferenças com o projeto atual.
No seu primeiro ano de governo, Bolsonaro deu uma declaração numa visita à Buenos Aires, sobre o tema. Perguntado sobre os prejuízos para o Brasil, o ex-presidente disse que “em todo casamento alguém perde alguma coisa”.
“O Paulo Guedes nada mais fez do que dar um primeiro passo para um sonho de uma moeda única na região do Mercosul: o peso-real Quem vai achar é ele. Como aconteceu o Euro lá atrás, pode acontecer o peso-real aqui, pode acontecer”, disse Bolsonaro em entrevista (veja o vídeo no final da matéria).
Em 2021, o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a sugerir na Comissão de Relações Exteriores do Senado a criação de uma moeda única para o Mercosul, assim como houve no Mercado Comum Europeu.
“Embora cada Estado possa ter sua política fiscal, o Brasil deveria imaginar uma aproximação maior, com área de livre comércio”, sugeriu. “Poderíamos ter uma integração completa e, neste sentido, o Brasil assumiria uma função como a da Alemanha na Europa.”
Ou seja, Guedes e Bolsonaro estavam tentando emplacar um projeto de moeda única para substituir o real. A proposta do atual governo, no entanto, é de uma moeda comum. Entenda as diferenças:
Moeda única x Moeda comum
No modelo europeu, defendido pelo governo Bolsonaro, os países são regidos pelo Banco Central Europeu (BCE), que controla as políticas monetárias para o euro. Com isso, os bancos centrais de cada país passaram a ter função de fiscalização do sistema financeiro local, principalmente. Além disso, o BCE controla a taxa de juros em todos os 20 países do bloco.
“Esse é o último estágio de uma integração regional. Nesse caso, cada país abandona sua moeda e há um período de adaptação à moeda da região. Isso tá fora de questão porque existe uma diferença muito grande entre os países da América Latina e cada país perderia sua independência de política monetária”, diz Julia Braga, professora de economia da UFF.
Nessas modelo, não é necessário fazer conversão cambial e as transações comerciais também são feitas na mesma moeda, evitando a dependência do dólar americano.
Talvez esse seja o único ponto de encontro entre as propostas de Guedes e do ministro da Economia, Fernando Haddad, a tentativa de reduzir a necessidade de usar o dólar.
Isso porque a proposta de moeda comum sequer trata-se de uma moeda física, o “sur” seria usado apenas para transações comerciais e financeiras entre os países, ou seja, uma unidade virtual de valor, sem papel moeda, uma espécie de URV, para driblar a restrição de dólares da Argentina e facilitar o comércio entre os dois países.
“Essa seria uma espécie de moeda voltada para o comércio do Brasil dos países do Mercosul para não usar o dólar, já que a Argentina enfrenta escassez da moeda americana. Ela se destinaria para exportação e importação entre esses países”, explica a professora Julia Braga.
“Também seria necessário definir a taxa de câmbio entre o peso e o sur, entre o real e o sur. Seria necessário um indexador, como ocorreu no Plano Real, com a URV, para ocorrer essa transição para a ‘moeda comum’, que nada mais é que uma moeda de troca”, completa.
Na proposta do Haddad, nenhum país abre mão da sua própria moeda e esse meio de pagamento serve apenas para viabilizar o comércio internacional.
A professora da UFF explica que o sur nada mais é do que um “aperfeiçoamento” de algo que já existe.
“Existe um fluxo de comércio internacional que não precisa do dólar nas suas transações. A Argentina, por exemplo, só precisaria ter dólar para pagar a diferença, o saldo entre importação e exportação, caso fique deficitária com o Brasil. Nesse novo sistema, isso não seria necessário. Ela vai pagar a compra em peso, que será convertido para real e o que ficar deficitário poderá ser pago com contratos de garantias”.
“No fundo, não deixa de ser um mecanismo de crédito. É uma tentativa de elevar o comércio entre os dois países, que vem caindo praticamente à metade nos últimos anos”, adiciona.
Devido às dificuldades financeiras da Argentina, o país corre risco de diminuir a importação de produtos brasileiros, o que seria ruim para ambos os países. Sendo assim, os dois governos buscam criar um fundo de financiamento para a exportação de produtos brasileiros.
A medida visa a implementação de um banco de crédito de contratos de commodities, como petróleo, gás, trigo e soja, produzidos em larga escala pelos argentinos, para substituir o dólar, já que o país vizinho tem dificuldade de encontrar a moeda americana no mercado.
A ideia é garantir ao governo brasileiro um seguro em caso de calote ou desvalorização do peso argentino, sem interferir na balança comercial entre as duas economias.
Em entrevista a jornalistas nesta segunda-feira (23), o ministro da Fazenda não perdeu a oportunidade de alfinetar o seu antecessor.
“Meu antecessor defendia uma moeda única, não é disso que estamos falando, não se trata da ideia de Paulo Guedes, se trata de avançarmos nos instrumentos previstos e que não funcionaram a contento”, disse Haddad.
“Nós não estamos defendendo moeda única. Nós estamos defendendo uma engenharia que não seja o pagamento em moedas locais, que não funcionou, mas não chega ao estágio de uma unificação monetária, como é o caso do Euro”, completou.
Bolsonaro defende moeda única
Projeto seria prejudicial ao Brasil, avaliam especialistas
Segundo o Instituto de Estatísticas Indec, a Argentina fechou 2022 com inflação de 94,8%, após o Índice de Preços ao Consumidor subir 5,1% em dezembro, contra 4,9% em novembro. A expectativa é que os preços no país continuem subindo ainda neste ano.
Além disso, a Argentina tem sido afastada de diversos acordos comerciais por conta de um débito de US$ 40 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), adquirido em 2018.
Com isso, aderir a uma moeda mais estável, como o real, seria um “deleite” para os “hermanos”, explica Leonardo Trevisan, professor de economia e relações internacionais da ESPM.
“Isso arrefeceria a busca por dólares dos exportadores argentinos, é o calcanhar de Aquiles deles. Eles não tem como pagar viagens, medicamentos. Eles criaram até o ‘dólar Copa do Mundo’, para pessoas que iriam ver os jogos no Catar. Essa situação revela uma carência absoluta de dólares”, diz.
Por isso, o projeto de moeda única deve enfrentar resistência entre os brasileiros.
Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa, afirma que devido à discrepância nas situações sociais, políticas e econômicas dos países latino-americanos, o processo deve ser demorado e desvantajoso para o Brasil.
“A Europa levou 30 anos nesse processo, quando os países já eram parecidos economicamente. O sonho de uma moeda integrada na América Latina é muito distante, nesse projeto o Brasil seria um pagador de contas dos outros países, na prática, seriam só vantagens para a Argentina. O governo deve explicar com calma quais são suas pretensões”, diz.
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